terça-feira, 15 de junho de 2010

Carolina


Carol era linda.Uma jovem na flor da idade. Tinha amigos, estudava numa boa escola, estava sempre rodeada de garotos que faziam tudo por ela.

Vinha de uma família cristã e por isso desde pequena já tinha ouvido falar de Jesus, mas foi com nove anos de idade que Carol realmente conheceu a Jesus e o aceitou em sua vida.

Com o passar do tempo Carol foi crescendo e descobriu como era linda. Ela achava divertido cativar admiradores e brincar com eles, principalmente os cristãos, pois eram os mais bonzinhos. Freqüentemente ia aos cultos, mas aquilo começou a se tornar algo mecânico e às vezes nem fazia mais sentido estar ali, senão por razões sociais.


Carol estava na 8º série e se apaixonou por um menino do colegial. Acordava mais cedo todos os dias para se arrumar antes de ir para a escola. Um dia ela estava sentada no pátio com suas amigas, quando uma delas disse que o garoto a estava olhando e vindo em sua direção, o que fez com que o coração de Carol disparasse, mas a menina sabia lidar muito bem com garotos, sabia que todos a achavam linda e que ela precisava apenas falar doce para eles se apaixonarem. Ele se aproximou e puxou papo com ela. E isso tornou a acontecer todos os dias, por vários dias.

O menino era diferente, ele era ousado, bonito e não parecia estar nas mãos dela como o de costume.

Com o tempo ela foi se envolvendo no mundo dele, nas coisas que ele gostava de fazer, nas músicas que ele gostava de ouvir, no grupo de amigos.

Carol começou a mudar e isso preocupava seus pais, que a aconselhavam, mas ela não entendia e achava que estava sendo injustiçada.

Aos poucos foi pegando ainda mais gosto pela sua relação com o garoto, ela descobria coisas novas, que faziam com que se sentisse viva e arrumava um motivo real para que seus pais falassem em sua cabeça.

Um dia sentados no quarto do garoto ele a beijou. Carol sabia que aquilo era errado, então começou a chorar e saiu correndo dali.

Chegou em sua casa e se trancou no quarto. Orou e pediu perdão a Deus.

Por umas 2 semanas eles ficaram sem se falar e o garoto não parava de ir atrás dela. As pessoas falavam que nunca o tinham visto assim tão apaixonado. Isso foi mexendo com seus sentimentos. Voltaram a se falar e logo Carol queria tanto beijá-lo novamente que não via mais sentido em não fazê-lo.

Foram meses namorando escondido e aquele sentimento de culpa foi diminuindo. Eles foram se envolvendo e aquilo tudo era muito intenso pra garota. Com o tempo Carol ia cedendo cada vez mais aos desejos do garoto. Até que Carol transou com ele, sabia que aquilo era pecado, mas estava muito apaixonada e sabia que ele era diferente. Que por amor a ela o garoto poderia um dia se converter. E depois de uma prova de amor dessas, não poderia ser diferente.

E afinal, onde estava escrito na bíblia que o sexo antes do casamento era pecado? Haviam dito pra ela que ficar também era pecado, que se envolver com caras que não eram cristãos também, no entanto, olha como ela estava bem, feliz. As pessoas da igreja eram muito radicais, não sabiam do que estavam falando. Seguiam a bíblia ao pé da letra sem nem ao menos a entendê-la.Eram ignorantes.Carol pensava: “Ou será que Deus ia querer que as pessoas vivessem sem conhecer a felicidade de um namoro como o que eu tenho? É preciso adaptar a bíblia aos dias de hoje, a realidade agora é outra. Do meu relacionamento com Deus sei eu. Ele me ama e vive em mim e ponto. Ninguém tem nada a ver com a minha vida”.

Como a igreja tinha “errado” com relação ao namorado dela, Carol começou a questionar o dízimo, Carol começou a questionar a santidade, Carol não via mais sentido em muita coisa ali na Igreja.Aos poucos Carol foi deixando de ir aos cultos, as células, à Igreja. Mas às vezes ela ainda falava com Deus, porque ela não tinha rompido com Ele, só com os “hipócritas” que formavam a Igreja.

Depois de um ano, o tal garoto, rompeu com ela e uma semana depois estava com outra.Passeando de mãos dadas no corredor da escola dela, sentados no mesmo banco que antes eles se sentavam juntos.

Carol sabia que aquilo ia acontecer, ela sentia que ele estava frio com ela, não ligava mais, saia com os amigos com mais freqüência, não queria mais beijá-la e o sexo começou a se tornar eventual, ela tinha até a impressão que ele estava com nojo dela. Mas ela não queria enxergar que aquilo realmente estava acontecendo, até que ele um dia ligou e disse que não queria mais nada com ela.

Aquilo foi a morte pra Carol.

Quando completou seus 15 anos de idade, ao invés de festa de debutante, Carol escolheu viajar sozinha para o exterior, ela foi passar um mês na Irlanda.

Ela queria passear, ela queria se divertir, ela precisava fugir de toda aquela loucura que sua vida havia se tornado.

Chegando na Irlanda, Carol quis “espairecer”, foi para as baladas mais famosas, ficou com os caras mais bonitos, usou as drogas da moda, bebeu as bebidas mais fortes e dormiu.

No dia seguinte Carol estava enjoada, enojada, ela estava de ressaca física e moral. Então ela saiu do hotel em que estava hospedada, e foi conhecer os famosos parques da Irlanda, ela precisava fugir daqueles pensamentos, da realidade, foi procurar algo para ocupar a sua mente.

Era uma segunda-feira à tarde, estava frio mas tinha sol, e enquanto ela caminhava milhares de pensamentos estavam passando pela sua cabeça.

Ela havia saído do Brasil, porque precisava de um tempo, precisava ficar só, apesar de ter medo do que isto poderia resultar…Carol não sabia em qual momento sua vida havia se transformado naquela angústia. Ela queria mudar, mas não sabia como. Ela tinha pensado que de repente a bíblia estava certa, mas assumir isso seria assumir que ela tinha errado. Então ela não tinha com quem conversar a respeito, alguém para pedir conselhos. Ela se sentia culpada, mas não queria assumir. Ela tinha tomado um caminho que agora não poderia voltar atrás.

Estava começando a anoitecer, Carol decidiu pegar um atalho que a levaria mais rápido para o hotel, ela tinha pressa de chegar, não parava de pensar no frigobar do seu quarto, pensou que se estivesse muito bêbada ela teria coragem de pôr um ponto final naquele sofrimento, começou a correr no meio daquele mato alto, não tinha medo de nada, foi em frente sem olhar para trás, quando de repente ela torceu o pé e caiu de um barranco alto, rolou várias vezes até parar no fim do morro. Carol se viu no fundo do poço, finalmente sozinha, não tinha mais nada pra lhe distrair, não tinha pra onde fugir, achou que fosse enlouquecer, ela não tinha a quem chamar, não tinha ninguém para se mostrar, nem para se defender… Então, Carol se entregou ao choro e começou a lembrar dos seus dias até ali:

“Foram tantas as tardes vazias, estirada num colchão, chorando sem explicação, só me entregando aquela tristeza que me consumia….eu não queria assumir que precisava de você, eu me bastava, eu queria me erguer diante dos teus olhos e brilhar sozinha, queria te provar que eu estava certa, que eu sabia o que estava fazendo, que eu não precisava de você, queria ser forte, pra esconder a minha dor…

Eu busquei em cada bar que eu fui, uma nota que ensurdecesse minha solidão, um timbre que fizesse bater de novo meu coração…mas ele só ecoava dentro de mim, ficava espremido entre minhas costelas, doendo tanto….”

Porque é mais fácil se acostumar com a dor, do que buscar a felicidade?

Porque é tão difícil largar mão da vida que se vive, mesmo sabendo que está te matando aos poucos, que já não vale mais a pena…

Carol se viu sozinha caída naquele lugar, não tinha a quem chamar, então se viu obrigada a se acalmar, a refletir. Aos poucos foi encarando um a um cada um dos seus medos, cada uma das suas tristezas, suas fraquezas que a faziam tão forte lá fora e em como essas coisas não faziam sentido algum ali, então ela reconheceu que suas verdades não eram inteiras, que elas estavam erradas… sua voz começou a se fazer ouvida pelo seu coração, como a muito não fazia, seus sentimentos estavam sendo alcançados pela razão, ela começou a se reconhecer, assumir seus erros, olhar pra si mesma de maneira sincera; doeu muito tirar a máscara e ver quem realmente era, quem havia se tornado, Carol se envergonhou… mas é preciso saber onde se está para poder sair do lugar.

Quando achou que ninguém mais se importava com ela e que nem poderia esperar isso de alguém depois de tudo o que tinha feito para as pessoas ao seu redor, descobriu quem ela era e como tinha errado.

A noite estava fria e Carol acabou dormindo envolta numa poça de lágrimas.

Quando Carol acordou já havia amanhecido e a menina colocou-se a rir, quando percebeu que estava a poucos metros da estrada. Ela se levantou, tentou se recompor, mas alguma coisa estava diferente, ela já não se importava tanto com o que ou outros iriam pensar dela.Pela primeira vez em muitos anos, ela se sentia viva de verdade. Ela sabia quem era e quem queria ser. Carol pensou: “tenho uma longa caminhada pela frente”.

E foi andando até chegar ao hotel; Carol sorria. E no caminho começou a falar:

“Por algum tempo eu senti um imenso vazio dentro de mim, muitas vezes eu nem sabia o porque, tentei me encontrar em cigarros, em maconha, em cada esquina que você não estava, em vários corpos, em falsos abraços e em beijos amargos. Era muito difícil ver, que ao tentar me encontrar eu estava na verdade buscando por você.

Só quando já estava realmente morta, quando já não havia para onde correr, já não importava o que os outros iam dizer, não existia mais orgulho que me impedia de tentar, quando eu abri mão da imagem que tentava fazer com que os outros vissem em mim; foi quando eu cansei de me destruir que eu desisti de resistir a você.”

Carol ao cair do barranco, se abriu para uma análise sincera de si, ela se encontrou com Deus. Ele sabia dos seus erros e não se importou com nenhum deles. Carol se sentiu constrangida com o amor de Deus, pois ela sentiu o seu perdão e misericórdia lavarem a sua alma e a encorajarem a continuar. A começar de novo.

Carol entendeu quem ela era, se lembrou de quem Deus era e de como ele a amava infinitamente. Ela descobriu que o pecado não é alguma coisa que Deus proíbe seus filhos de fazer por capricho, doutrina ou religiosidade. Pecado é o que Deus diz que é melhor evitarmos, pois nos levará a morte espiritual. Como um pai que ao ver o filho aproximar-se da tomada não diz, “filho não coloque o dedo ai porque é pecado”, mas diz “filho não coloque o dedo ai pois a eletricidade mata”.

Aquele vazio que Carol sentia era a falta de Deus. Pois quando ela decidiu dirigir a sua vida, Deus se retirou de cena e passou a ser um mero espectador, torcendo que ela logo voltasse para Ele.

Que Deus os abençoe!

~*

Olhos Vendados


Por Mariana Carvalho - http://nomeuchapeu.blogspot.com/
Eu acordei meio grogue, sem ter todos os sentidos, meio dopada ou coisa assim, sentia apenas o ar e o cheiro ao meu redor. Era estranho... um cheiro misto de produtos químicos com produtos de limpeza, esterilização e medicamentos. Chegava a ser enjoado de tão limpo que era aquele cheiro, que por sinal, não me era estranho: eu estava em um hospital. Não me lembrava de nada, senão da festa de casamento em que eu estava e depois... tudo tinha escurecido na minha mente. Além do cheiro, a textura dos lençóis não era igual à textura do meu lençol e o travesseiro também não era o meu. O colchão de tão duro chegava a doer a minha coluna que pelo jeito, estava na mesma posição fazia tempo!
Me esforcei para abrir os olhos e não conseguia e então, com os dedos percebi que tinham curativos nos meus olhos e por isso, estavam presos. Com o meu movimento, alguém que estava do meu lado despertou e chamou outra pessoa para me ver. Ouvi sussurros que mal davam de se ouvir:

-Calma senhor, eu já estou indo! Já mandei chamarem o médico, tá tudo bem!
-Eu sei moça, mas ela se mexeu, acordou e começou a tatear tudo e até os olhos, por isso tenho medo que algo ruim aconteça!
-Deixe me ver...

Senti um calor se aproximando, um corpo chegando mais perto de mim um pouco mais e verificando se de fato eu estava acordada. Fiz um esforço e com o fio de voz que saia dos meus lábios, disse:

-Onde eu estou? Você sabe o que aconteceu? Por quê eu não tô vendo nada? E essas coisas nos meus olhos?
-Calma, menina, você tá bem! Sofreu um pequeno acidente e feriu os seus olhos mas não se preocupe que você não está cega... o curativo é temporário para garantir que o machucado se cure!
-Quanto tempo faz que eu tô aqui?
-Por volta de 1 mês por aí...
-E por que eu não acordei antes?
-O seu estado era bem grave porque a cabeça bateu muito forte e você ficou desacordada por bastante tempo, mas como os seus olhos foram operados, a maior parte deste tempo foi por causa dos sedativos pra evitar a dor e tal...

Ela injetou alguma coisa na minha veia. Senti o líquido gelado passar pelo meu braço e não consegui mais prestar atenção em sequer uma palavra que a enfermeira dizia. Acordei algumas horas depois, suponho e alguém segurou a minha mão. Era macia, mas não era feminina. Jovem, mas não infantil. Não conhecia aquelas mãos... tirei a minha no susto.

-Quem tá aí?

O silêncio tomou o quarto me deixando com medo. Repeti a pergunta algumas vezes com a voz um pouco trêmula e nenhuma resposta. Depois de algum tempo, ele falou:

-Danilo. Eu estava no mesmo ônibus que você e também sofri acidente, mas agora eu já tô bem... algo em você me chamou a atenção e eu me preocupei muito! Me senti na responsabilidade de cuidar de você enquanto estivesse aqui. Não deve se lembrar, mas te contei várias histórias minhas, cantei, trouxe o meu violãozinho pra cá e toquei enquanto você dormia. Eu durmo no hospital com você todos os dias depois do meu serviço.
-Ah... o ônibus.

Foi o que eu consegui dizer. Enquanto ele falava, eu ia me lembrando das coisas... eu ia voltar de ônibus pra casa depois da festa porque o carro tinha estragado e eu não tinha como voltar! Era madrugada e, não me lembro direito, mas me parece que algum carro desgovernado ou sei lá eu, passou na direção contrária meio de sopetão e tudo aconteceu. Eu sempre tive a mania de sentar nas cadeiras altas dos ônibus, do lado da janela. Como não me lembrava do que tinha acontecido, supus que algum caco tinha cortado o meu olho ou qualquer coisa do tipo... A voz do tal Danilo era tão gentil, tão doce e eu não entendia o porquê dele estar ali todos os dias, se importando, como se eu fosse amiga íntima! Contudo, ele era o único que se importava, então, deixei-o permanecer.

Conforme os dias passavam, eu ia o conhecendo mais, gostando mais. Eu tava mesmo me empolgando com o fato de ter conseguido um cara que se importasse comigo e me cuidasse. Ele era tudo o que eu tinha imaginado para príncipe encantado e era só meu! Ele de fato me amava. Não que ele me dissesse, mas na sua voz estava a minha confirmação e no seu perfume, a minha esperança de todos os dias. Ele trabalhava o dia todo até umas seis da tarde e depois ia direto pro hospital, comia algo no caminho e tomava banho no hospital mesmo. Todos já o conheciam como o namoradinho da Júlia ou o carinha do quarto 205. Ele era engraçado e ao mesmo tempo sério. Não digo sério de sem-graça, mas sério de maduro. Do contrário, de tudo ele fazia graça, tentando tornar os meus dias mais leves desde me dar comida na boca e fazer aviãozinho até descrever cada cena da novela, quase nem me deixando escutar. Ele comprou o meu filme favorito e assistia todos os dias comigo! Era perfeito. O meu maior anseio era voltar a enxergar para vê-lo de perto, tirar a curiosidade, comparar com a minha imaginação e assim, sermos felizes para sempre.

Ele vivia dizendo que era feio e tal, mas eu não ligava, era ele quem eu queria, mais ninguém no mundo todo. Só que o meu tipo de cara, desde bem pequena, era baseado no Ken da Barbie. Fortinho, bonitão e apaixonado. Se ele era fortinho, não sei, bonitão, também não sei, mas que era apaixonado... ô se era! Conforme os dias iam passando, a minha ansiedade ia aumentando até que o grande dia finalmente chegou. Danilo, junto com o médico e a enfermeira, me viu abrir os olhos pela primeira vez em muito tempo! Tava tudo muito embaçado e eu não conseguia distinguir as coisas. Vi um rapaz de média estatura, de cabelos negros e fechei os olhos lentamente. Ele se aproximou, segurou o meu queixo, levantou a minha cabeça e disse:
-Amor, tá tudo bem? É normal a gente não enxergar bem assim de cara!

Levantei a cabeça e denovo abri os olhos. Desta vez a minha visão já havia se adaptado um pouco melhor, embora não estivesse perfeita. Consegui fitá-lo e, de fato, a silhueta que vira, lhe pertencia. Um nó surgiu na minha garganta, sinto como se fosse hoje a angústia que me assombrou naquele instante. Ele não era nada daquilo que parecia! Sua voz havia me enganado e eu já não conseguia mais sentí-lo como antes! O lado esquerdo do seu rosto era meio esquisito! Tinha uma cicatriz imensa que acabava com qualquer chance de beleza que ele tivesse. Sua estatura era média. MÉDIA! Eu sonhava com um altão, bonitão, fortão. Era um carinha magrelo com uma cara bem feia. Eu tava hiper decepcionada. E os meus amigos o que diriam? E a minha família? E os meus filhos como seriam? Que horror.

Fingi estar tudo bem, passei a noite em silêncio. No dia seguinte ele ainda estava lá sorrindo pra mim. Quando eu acordei ele me olhou meio desconfiado e disse:

-Seus olhos são lindos... foi o que me chamou a atenção no ônibus aquela noite e, bem, foi o que me fez ficar aqui do seu lado o tempo todo.

Olhei nos olhos dele e percebi que um dos olhos não era de verdade. A bolota voltou na minha garganta e eu sorri timidamente, mas incomodada. Permaneci com ele por um tempo e alguns meses depois do meu "retorno à vida" pedi que ele se afastasse de mim. Não sei o que tinha acontecido com o "amor" que eu tinha por ele... na verdade nem era amor! Eu tava num momento frágil e ele foi o único que se importou comigo, aí eu me apaixonei.

-Peraí... ele foi o único que se importou comigo. Que que eu tô fazendo dando bola pro que os outros vão pensar, sendo que os outros nem se importaram quando eu tava mal?

O interessante foi que eu falei isso pra mim mesma, sentada num banquinho de shopping, sozinha, como sempre. Fazia algum tempo que eu não sabia notícias dele, mas ele me amava tanto! Eu amava tanto ele, porque que isso tinha acontecido? Por estereótipos de beleza? Por preconceito ou o quê? Não sei... o que eu sabia é que o vazio que ele tinha deixado no meu coração ninguém era capaz de ocupar. Chorei só de pensar na besteira que eu tinha feito, no tempo que tinha passado e na felicidade que eu tinha perdido.
Senti duas mãos nos meus olhos, como criança que brinca de adivinha. Sem ouvir nada, reconheci aquelas mãos jovens, aquelas mãos que tinham segurado as minhas já fazia um tempo. Respirei fundo e ouvi:

-Adivinha quem é?

E aquela voz me trouxe tudo o que eu tinha perdido, aquela voz me fez voltar e de olhos fechados deixei-o me guiar pelo resto da vida e só assim eu descobri o que, de fato, era a felicidade. Os meus olhos? Não me serviam pra nada mais! A realidade era o contrário do que eu tinha pensado: não foram os meus ouvidos que me enganaram, foram os olhos. Segurei as suas mãos e nunca mais quis largá-las novamente.

Todas as cartas de amor...


Fernando Pessoa
(Poesias de Álvaro de Campos)


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21/10/1935