terça-feira, 15 de junho de 2010

Olhos Vendados


Por Mariana Carvalho - http://nomeuchapeu.blogspot.com/
Eu acordei meio grogue, sem ter todos os sentidos, meio dopada ou coisa assim, sentia apenas o ar e o cheiro ao meu redor. Era estranho... um cheiro misto de produtos químicos com produtos de limpeza, esterilização e medicamentos. Chegava a ser enjoado de tão limpo que era aquele cheiro, que por sinal, não me era estranho: eu estava em um hospital. Não me lembrava de nada, senão da festa de casamento em que eu estava e depois... tudo tinha escurecido na minha mente. Além do cheiro, a textura dos lençóis não era igual à textura do meu lençol e o travesseiro também não era o meu. O colchão de tão duro chegava a doer a minha coluna que pelo jeito, estava na mesma posição fazia tempo!
Me esforcei para abrir os olhos e não conseguia e então, com os dedos percebi que tinham curativos nos meus olhos e por isso, estavam presos. Com o meu movimento, alguém que estava do meu lado despertou e chamou outra pessoa para me ver. Ouvi sussurros que mal davam de se ouvir:

-Calma senhor, eu já estou indo! Já mandei chamarem o médico, tá tudo bem!
-Eu sei moça, mas ela se mexeu, acordou e começou a tatear tudo e até os olhos, por isso tenho medo que algo ruim aconteça!
-Deixe me ver...

Senti um calor se aproximando, um corpo chegando mais perto de mim um pouco mais e verificando se de fato eu estava acordada. Fiz um esforço e com o fio de voz que saia dos meus lábios, disse:

-Onde eu estou? Você sabe o que aconteceu? Por quê eu não tô vendo nada? E essas coisas nos meus olhos?
-Calma, menina, você tá bem! Sofreu um pequeno acidente e feriu os seus olhos mas não se preocupe que você não está cega... o curativo é temporário para garantir que o machucado se cure!
-Quanto tempo faz que eu tô aqui?
-Por volta de 1 mês por aí...
-E por que eu não acordei antes?
-O seu estado era bem grave porque a cabeça bateu muito forte e você ficou desacordada por bastante tempo, mas como os seus olhos foram operados, a maior parte deste tempo foi por causa dos sedativos pra evitar a dor e tal...

Ela injetou alguma coisa na minha veia. Senti o líquido gelado passar pelo meu braço e não consegui mais prestar atenção em sequer uma palavra que a enfermeira dizia. Acordei algumas horas depois, suponho e alguém segurou a minha mão. Era macia, mas não era feminina. Jovem, mas não infantil. Não conhecia aquelas mãos... tirei a minha no susto.

-Quem tá aí?

O silêncio tomou o quarto me deixando com medo. Repeti a pergunta algumas vezes com a voz um pouco trêmula e nenhuma resposta. Depois de algum tempo, ele falou:

-Danilo. Eu estava no mesmo ônibus que você e também sofri acidente, mas agora eu já tô bem... algo em você me chamou a atenção e eu me preocupei muito! Me senti na responsabilidade de cuidar de você enquanto estivesse aqui. Não deve se lembrar, mas te contei várias histórias minhas, cantei, trouxe o meu violãozinho pra cá e toquei enquanto você dormia. Eu durmo no hospital com você todos os dias depois do meu serviço.
-Ah... o ônibus.

Foi o que eu consegui dizer. Enquanto ele falava, eu ia me lembrando das coisas... eu ia voltar de ônibus pra casa depois da festa porque o carro tinha estragado e eu não tinha como voltar! Era madrugada e, não me lembro direito, mas me parece que algum carro desgovernado ou sei lá eu, passou na direção contrária meio de sopetão e tudo aconteceu. Eu sempre tive a mania de sentar nas cadeiras altas dos ônibus, do lado da janela. Como não me lembrava do que tinha acontecido, supus que algum caco tinha cortado o meu olho ou qualquer coisa do tipo... A voz do tal Danilo era tão gentil, tão doce e eu não entendia o porquê dele estar ali todos os dias, se importando, como se eu fosse amiga íntima! Contudo, ele era o único que se importava, então, deixei-o permanecer.

Conforme os dias passavam, eu ia o conhecendo mais, gostando mais. Eu tava mesmo me empolgando com o fato de ter conseguido um cara que se importasse comigo e me cuidasse. Ele era tudo o que eu tinha imaginado para príncipe encantado e era só meu! Ele de fato me amava. Não que ele me dissesse, mas na sua voz estava a minha confirmação e no seu perfume, a minha esperança de todos os dias. Ele trabalhava o dia todo até umas seis da tarde e depois ia direto pro hospital, comia algo no caminho e tomava banho no hospital mesmo. Todos já o conheciam como o namoradinho da Júlia ou o carinha do quarto 205. Ele era engraçado e ao mesmo tempo sério. Não digo sério de sem-graça, mas sério de maduro. Do contrário, de tudo ele fazia graça, tentando tornar os meus dias mais leves desde me dar comida na boca e fazer aviãozinho até descrever cada cena da novela, quase nem me deixando escutar. Ele comprou o meu filme favorito e assistia todos os dias comigo! Era perfeito. O meu maior anseio era voltar a enxergar para vê-lo de perto, tirar a curiosidade, comparar com a minha imaginação e assim, sermos felizes para sempre.

Ele vivia dizendo que era feio e tal, mas eu não ligava, era ele quem eu queria, mais ninguém no mundo todo. Só que o meu tipo de cara, desde bem pequena, era baseado no Ken da Barbie. Fortinho, bonitão e apaixonado. Se ele era fortinho, não sei, bonitão, também não sei, mas que era apaixonado... ô se era! Conforme os dias iam passando, a minha ansiedade ia aumentando até que o grande dia finalmente chegou. Danilo, junto com o médico e a enfermeira, me viu abrir os olhos pela primeira vez em muito tempo! Tava tudo muito embaçado e eu não conseguia distinguir as coisas. Vi um rapaz de média estatura, de cabelos negros e fechei os olhos lentamente. Ele se aproximou, segurou o meu queixo, levantou a minha cabeça e disse:
-Amor, tá tudo bem? É normal a gente não enxergar bem assim de cara!

Levantei a cabeça e denovo abri os olhos. Desta vez a minha visão já havia se adaptado um pouco melhor, embora não estivesse perfeita. Consegui fitá-lo e, de fato, a silhueta que vira, lhe pertencia. Um nó surgiu na minha garganta, sinto como se fosse hoje a angústia que me assombrou naquele instante. Ele não era nada daquilo que parecia! Sua voz havia me enganado e eu já não conseguia mais sentí-lo como antes! O lado esquerdo do seu rosto era meio esquisito! Tinha uma cicatriz imensa que acabava com qualquer chance de beleza que ele tivesse. Sua estatura era média. MÉDIA! Eu sonhava com um altão, bonitão, fortão. Era um carinha magrelo com uma cara bem feia. Eu tava hiper decepcionada. E os meus amigos o que diriam? E a minha família? E os meus filhos como seriam? Que horror.

Fingi estar tudo bem, passei a noite em silêncio. No dia seguinte ele ainda estava lá sorrindo pra mim. Quando eu acordei ele me olhou meio desconfiado e disse:

-Seus olhos são lindos... foi o que me chamou a atenção no ônibus aquela noite e, bem, foi o que me fez ficar aqui do seu lado o tempo todo.

Olhei nos olhos dele e percebi que um dos olhos não era de verdade. A bolota voltou na minha garganta e eu sorri timidamente, mas incomodada. Permaneci com ele por um tempo e alguns meses depois do meu "retorno à vida" pedi que ele se afastasse de mim. Não sei o que tinha acontecido com o "amor" que eu tinha por ele... na verdade nem era amor! Eu tava num momento frágil e ele foi o único que se importou comigo, aí eu me apaixonei.

-Peraí... ele foi o único que se importou comigo. Que que eu tô fazendo dando bola pro que os outros vão pensar, sendo que os outros nem se importaram quando eu tava mal?

O interessante foi que eu falei isso pra mim mesma, sentada num banquinho de shopping, sozinha, como sempre. Fazia algum tempo que eu não sabia notícias dele, mas ele me amava tanto! Eu amava tanto ele, porque que isso tinha acontecido? Por estereótipos de beleza? Por preconceito ou o quê? Não sei... o que eu sabia é que o vazio que ele tinha deixado no meu coração ninguém era capaz de ocupar. Chorei só de pensar na besteira que eu tinha feito, no tempo que tinha passado e na felicidade que eu tinha perdido.
Senti duas mãos nos meus olhos, como criança que brinca de adivinha. Sem ouvir nada, reconheci aquelas mãos jovens, aquelas mãos que tinham segurado as minhas já fazia um tempo. Respirei fundo e ouvi:

-Adivinha quem é?

E aquela voz me trouxe tudo o que eu tinha perdido, aquela voz me fez voltar e de olhos fechados deixei-o me guiar pelo resto da vida e só assim eu descobri o que, de fato, era a felicidade. Os meus olhos? Não me serviam pra nada mais! A realidade era o contrário do que eu tinha pensado: não foram os meus ouvidos que me enganaram, foram os olhos. Segurei as suas mãos e nunca mais quis largá-las novamente.

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